Menina
nascida em hospital de Pune, na Índia: bebês do sexo
feminino costumam provocar pânico nas mães
indianas
(Foto: K. Keppner/DW)
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Preferência de pais por
herdeiros homens provoca milhões de abortos e punição violenta às mães.
"É uma menina!"
As três palavras encheram de
terror o coração de Jaya Sable quando ela deu à luz há dez anos. Seu marido e
sua família queriam muito um menino, e nem a visitaram no hospital. Jaya foi
punida quando voltou para casa, por não ter gerado um filho homem.
O marido e os sogros bateram nela
e a xingaram durante meses. Um dia a atacaram com ácido, desfigurando parcialmente
seu rosto. Eles até conseguiram que Jaya fosse legalmente declarada morta,
obtendo um certificado de óbito falso.
"Às vezes eu desejo ter dado
à luz um menino. Minha vida teria sido diferente. Eu certamente teria sido
poupada dessa tortura", diz a mulher de 27 anos, deitada no leito de
hospital em Pune, se recuperando de uma segunda cirurgia plástica, com o braço
direito enfaixado, seu peito, pescoço e mandíbula marcados por profundas
cicatrizes.
O caso de Jaya é extremo, mas
serve de exemplo para a preferência generalizada por meninos em relação às
meninas na Índia, que levou a abortos desenfreados de fetos do sexo feminino,
infanticídios, negligência em relação a meninas e, no caso de Jaya, a tentativa
de assassinato.
Ativistas afirmam que milhões de
fetos femininos foram abortados nos últimos anos, apesar de a legislação
proibir o rastreio sexual pré-natal, e de campanhas governamentais apelarem
para que as pessoas não matem suas filhas. No início de março, a polícia do
distrito de Sangli, em Maharashtra, a cerca de 230 quilômetros ao sul de Pune,
descobriu 19 fetos femininos abortados perto de um hospital, que as autoridades
acreditam ser uma clínica de abortos ilegais.
O médico
indiano Ganesh Rakh escolheu como missão salvar os
bebês do sexo feminino (Foto: K. Kepnner/DW)
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A preferência por filhos homens no
país também teve um impacto corrosivo sobre a proporção entre os sexos da
Índia. De acordo com o censo de 2011, para cada mil meninos nascidos na Índia,
nasceram apenas 927 meninas. As últimas estatísticas, divulgadas no início de
2016, mostraram que a cifra caiu ainda mais, para 918.
Incentivo ao parto de meninas
As estatísticas fizeram o médico
Ganesh Rakh se dar conta da seriedade da situação. O médico, que trata Jaya em
seu hospital, relata perceber que sempre que uma mulher grávida chega para o
parto, todos os seus parentes vêm cheios de esperança de que o bebê seja um
menino. "Eles comemoravam e distribuíam doces quando nascia um menino. Mas
quando uma menina nascia, os parentes desapareciam, a mãe chorava, as famílias
pediam um desconto", diz o médico, de 41 anos.
Isso levou Rakh a lançar em seu hospital
em janeiro de 2012 a iniciativa Mulgi Vachva Abhiyan, que, traduzida da língua
marata, quer dizer "campanha para salvar a criança menina". A ideia é
simples: Rakh abre mão de todas as taxas no caso do nascimento de uma menina, e
a equipe do hospital celebra a chegada do bebê com bolo e velinhas. "Nós
queremos enviar uma mensagem de que o nascimento de uma menina vale a pena se
comemorar", diz Rakh. Mais de 500 meninas nasceram em seu hospital desde o
lançamento da campanha. Nenhum dos pais teve que pagar pelo serviço.
Mas Rakh está ciente de que uma
campanha sozinha não vai resolver o problema. Uma grande parte do seu trabalho
consiste em fornecer aconselhamento a mulheres grávidas e a seus familiares.
Já que muitas famílias são loucas
para ter um menino, colocando uma enorme pressão sobre a futura mãe, Rakh diz
que tenta ir contra isso repetindo o mantra "você vai ter uma menina"
desde o primeiro dia, para preparar mentalmente a família – mesmo que ele não
saiba o sexo do bebê e que seja legalmente proibido informá-lo à família.
"Às vezes, nossa primeira
impressão é de que a paciente e sua família reagem bastante negativamente
quando eu digo que vai ser uma garota. Então, eu sei que precisamos prestar
mais atenção no caso e monitorá-lo de perto", explica Rakh. "Nosso
objetivo é garantir que o feto permaneça saudável e cresça bem, e que a família
não realize um teste de determinação de sexo ilegal ou um feticídio feminino
nesses nove meses."
O médico e sua equipe passam muito
tempo tentando entender as preocupações da família e aliviando seus medos sobre
ter uma filha. Rakh também organiza passeatas pelas ruas de Pune, para
convencer as pessoas de que uma filha é tão preciosa quanto um filho. Ele
entrou em contato com médicos de todo o país para se juntarem a ele em sua
campanha – e diz que muitos se comprometeram a apoiar.
Saya Sable
teve que pagar um preço alto por ter dado à luz
uma garota (Foto: K. Keppner/DW)
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Medo e fé cega
Sua experiência na área deu a Rakh
uma visão profunda sobre as mentalidades e crenças por trás da preferência
tradicional pelos meninos. "A mentalidade aqui é que a família não está
completa sem um menino. O menino é aquele que mantém a linhagem famíliar",
explica Rakh.
"As meninas, por outro lado,
são vistas como um fardo, que vão deixar os pais para formar seus lares após o
casamento. Os costumes do casamento requerem que a família da menina pague um
grande dote para poder casá-la. E eles também têm que assumir todas as despesas
do casamento Não é de admirar que as pessoas tenham medo de ter uma
filha", completa.
São pessoas como Chandabai
Budhwant, operária de 55 anos de uma aldeia fora de Pune. Ela foi ao hospital
para conhecer sua neta de três dias. Ela própria teve seis filhas e um filho.
"Depois que tive um filho, senti como se tivesse finalmente me tornado
alguém de sucesso. As pessoas deixaram de me provocar e de me dizer coisas
indecentes porque eu só tinha filhas", lembra. "Eu não queria que
minhas próprias filhas passassem pela mesma coisa, por isso eu esperava que
elas tivessem filhos, temia por elas."
É o medo que levou Chandabai a
visitar "homens santos" e a obter "remédios" deles e a orar
em diferentes templos para garantir que suas filhas dessem à luz um filho.
Mas Chandabai insiste que ela e
seus parentes mudaram de ideia desde que conheceram o médico Ganesh Rakh. Ela
agora está feliz que sua filha Ashwini tenha dado à luz uma menina – que os
funcionários do hospital chamam de Angel. Chandabai diz que a família planeja
educá-la e não somente gastar grandes somas de dinheiro em seu casamento,
quando ela crescer.
Enfermeiras e médicos do hospital
se aglomeram em torno da criança, pressionando flores nas mãos da mãe radiante,
cortando um bolo em honra da menina e cantando Parabéns pra você.
Rakh acredita que fazer uma
família mudar de ideia sobre ter uma filha pode render mais frutos futuros.
"Eles falam sobre isso com outras pessoas, que também repensam suas
próprias ideias. Então, isso tem um efeito dominó, e acho que pode trazer
mudanças reais", ressalta. "No dia em que as pessoas começarem a
celebrar o nascimento de uma filha é quando eu vou começar a cobrar minhas
taxas novamente", brinca.
Por Deutsche Welle
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